Adenomiose e Transferência de Embriões
- SEMEAR fertilidade
- 2 de out.
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Atualizado: 3 de out.
A adenomiose, uma condição caracterizada pela presença de tecido endometrial dentro do miométrio, tem sido há muito tempo implicada como uma causa de infertilidade e uma barreira significativa para o sucesso na tecnologia de reprodução assistida (TRA). A narrativa predominante na medicina reprodutiva tem sido que essa patologia uterina cria um ambiente hostil para um embrião em implantação, levando a menores taxas de gravidez e piores desfechos obstétricos.
No entanto, à medida que os protocolos de TRA se tornam mais sofisticados e as metodologias de pesquisa mais rigorosas, um entendimento mais nuançado e dependente do contexto está a emergir. O verdadeiro impacto da adenomiose na transferência de embriões (TE) não é uma simples questão de presença ou ausência, mas sim uma interação complexa entre a gravidade da doença, as características da paciente e as estratégias de tratamento específicas empregadas.

Argumentos a Favor de um Impacto Prejudicial
A justificativa biológica para a adenomiose prejudicar a implantação é convincente. Acredita-se que as glândulas endometriais ectópicas dentro do músculo uterino perturbem a função normal do útero de várias maneiras. Elas podem desencadear um estado inflamatório crônico, alterar a expressão de genes cruciais para a receptividade endometrial e causar contrações uterinas anormais que podem dificultar fisicamente a fixação do embrião (Campo et al., 2012).
Essa hipótese é apoiada por um corpo substancial de evidências. Uma revisão sistemática e metanálise de referência concluiu que mulheres com adenomiose têm uma probabilidade significativamente reduzida de gravidez clínica e de nascido vivo, associada a um risco aumentado de aborto espontâneo após a fertilização in vitro (FIV) (Vercellini et al., 2020). Estudos retrospectivos de larga escala mais recentes reforçaram essa conclusão, com um deles a descobrir que um diagnóstico de adenomiose estava independentemente associado a uma redução nas taxas de nascidos vivos por transferência de embriões, mesmo após o controle estatístico de outros fatores (Li et al., 2023).
No entanto, a interpretação desses dados requer cautela. A idade da paciente é uma poderosa variável de confusão, embora estudos de alta qualidade tentem mitigar isso com ajustes estatísticos. Além disso, uma segunda questão introduz uma incerteza considerável na interpretação da literatura: o viés de publicação. Trata-se da tendência de estudos que mostram um resultado "positivo" (ou seja, que a doença é prejudicial) serem publicados mais prontamente do que aqueles com resultados "nulos". Este viés pode levar a uma superestimação da real magnitude do impacto negativo da adenomiose, uma vez que os estudos que não encontram uma associação têm menos probabilidade de serem publicados. Isso cria uma literatura que pode não refletir todo o espectro de evidências, gerando incerteza sobre se o problema é tão universalmente severo como parece.

Uma Contranarrativa: O Papel do Contexto e de um Modelo de FIV "Limpo"
É neste cenário de incerteza que o estudo prospectivo de Neal e colegas (2020) se torna criticamente importante. Esta pesquisa desafiou a narrativa predominante ao examinar uma população de TRA muito específica e moderna: mulheres assintomáticas submetidas a uma transferência única de um blastocisto geneticamente normal (euploide), descongelado. A sua descoberta surpreendente foi que, neste cenário altamente controlado, o diagnóstico ultrassonográfico de adenomiose não estava associado a qualquer diferença nas taxas de gravidez clínica, aborto espontâneo ou nascidos vivos.
Este resultado "nulo" não invalida necessariamente pesquisas anteriores, mas sim destaca a importância do contexto. Os autores propuseram duas razões principais para os seus resultados. Primeiro, ao transferir apenas embriões euploides, eles eliminaram a aneuploidia embrionária — uma causa importante de falha de implantação — como uma variável. Segundo, o estudo envolveu exclusivamente transferências de embriões congelados (TEC). O ambiente hormonal mais fisiológico de um ciclo de TEC pode não provocar a mesma resposta uterina negativa que os níveis suprafisiológicos de estrogênio de um ciclo a fresco.
Além disso, o estudo de Neal et al. (2020) revelou um desafio fundamental: a baixa reprodutibilidade do próprio diagnóstico. Eles descobriram que a concordância interobservadores entre cinco especialistas para o diagnóstico de adenomiose foi baixa. Isso levanta uma questão crucial: se os especialistas não conseguem concordar de forma confiável sobre quem tem a condição, como pode a literatura avaliar com segurança o seu verdadeiro impacto?
Otimizando o Preparo Endometrial: Um Equilíbrio de Vantagens e Desvantagens
Para pacientes com adenomiose mais grave ou sintomática, a estratégia mais utilizada é o pré-tratamento com um análogo agonista do hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH). O objetivo é criar um estado hipoestrogênico temporário para reduzir a inflamação (Gao et al., 2023).
Embora eficaz, essa abordagem envolve desvantagens significativas. A mais óbvia é o atraso no tratamento. Além disso, a supressão com agonista do GnRH exige o uso de um ciclo de TEC programado ou artificial, com hormônios externos. Isso impede o uso de um ciclo de TEC natural ou ovulatório, que conta com um corpo lúteo e pode ter benefícios para os desfechos perinatais. A decisão, portanto, envolve uma troca explícita entre suprimir a doença e optar por um ciclo potencialmente mais fisiológico.

Sucesso da transferência x adenomiose: uma relação que não é simples!
A relação entre o sucesso da transferência de embriões e a adenomiose está longe de ser simples. Na prática, a incerteza paira tanto sobre a real existência de um impacto clínico em todas as pacientes quanto sobre qual seria a melhor estratégia para a transferência de embriões.
Essa incerteza é alimentada por diversas fontes importantes de viés que dificultam conclusões definitivas. Fatores como a idade e a frequente associação da adenomiose com outras condições como leiomiomas, endometriose e baixa reserva ovariana, confundem os resultados da maioria dos estudos. Soma-se a isso a baixa reprodutibilidade do próprio diagnóstico ultrassonográfico, que questiona a consistência com que as pacientes são classificadas.
Além disso, o significativo risco de viés de publicação, que torna a divulgação de estudos com resultados negativos consideravelmente mais difícil, distorce o corpo de evidências disponíveis, especialmente quando a crença predominante na comunidade médica é a de um impacto negativo. A existência de um estudo prospectivo de grande porte e bem desenhado, como o de Neal e colegas (2020), que não encontrou efeito adverso em uma população específica, solidifica essa dúvida e desafia a narrativa convencional.
Diante do conhecimento atual, a conclusão mais prudente é que uma abordagem de "tamanho único" é inadequada. A decisão clínica deve ser altamente individualizada, pesando cuidadosamente a severidade dos sintomas e as características de cada paciente contra as incertezas da literatura e os custos e desvantagens das intervenções disponíveis.
Referências
● Campo, S., Campo, V., & Benagiano, G. (2012). Adenomyosis and infertility. Reproductive BioMedicine Online, 24(1), 35-46.
● Gao, J., et al. (2023). Gonadotropin-releasing hormone agonist pretreatment for frozen embryo transfer in women with diffuse adenomyosis: a randomized clinical trial. Reproductive BioMedicine Online.
● Li, Y., et al. (2023). The impact of sonographically diagnosed adenomyosis on in vitro fertilization outcomes: a large retrospective cohort study. Fertility and Sterility.
● Neal, S., Morin, S., Werner, M., Gueye, N.-A., Pirtea, P., Patounakis, G., Scott Jr, R., & Goodman, L. (2020). Three-dimensional ultrasound diagnosis of adenomyosis is not associated with adverse pregnancy outcome following single thawed euploid blastocyst transfer: prospective cohort study. Ultrasound in Obstetrics & Gynecology, 56(4), 611-617.
● Vercellini, P., Viganò, P., Somigliana, E., & Fedele, L. (2020). Adenomyosis and reproductive outcomes: a systematic review and meta-analysis. Human Reproduction Update.
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